Samuel de Freitas Pérsio, 38 anos, filho de Maria Augusta de Freitas Pérsio e Marcílio Pérsio, nasceu em 11 de maio de 1982, em Araucária (Paraná).
Samuel é nome bíblico, carregado de projeções ancestrais. O sobrenome de Freitas, de origem materna, é lembrado por ele como legado de seu avô, João Batista de Freitas, “homem gentil, de origem negra, pedreiro e contador de histórias, sempre bem-humorado. Minha cabeça crespa e cabelo grosso vêm dele”. Pérsio é nome do ramo paterno, italianos trabalhadores do campo, “o lado mais sisudo da família […], mas meu pai, seu Marcílio, sempre foi o oposto disso, sempre muito generoso e gentil”.
Assinar seus trabalhos artísticos como Samuel de Freitas Pérsio, nome e sobrenome completos, foi uma decisão muito elaborada, uma afirmação consciente de quem lê as marcas, impressas em seu corpo e em sua memória, dos homens e mulheres de sua classe que, antes dele, enfrentaram os desafios de seu tempo.
Até os 5 anos, Samuel viveu em Araucária, no interior do Paraná, em uma vila de trabalhadores da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), onde seu pai foi trabalhar como ferroviário. Sua família, de origem camponesa, migrou para a cidade em busca de sobrevivência, assim como muitas outras vitimadas pelo êxodo rural intensificado pelas medidas econômicas do governo ditatorial dos anos 1970. Na cidade, o trabalho de seu pai dividia-se entre a ferrovia e a construção civil.
Na década de 1980, a imposição capitalista levou à mudança do modelo de transporte e ao declínio das ferrovias, substituídas pelas rodovias. A família de Freitas Pérsio foi morar em um núcleo habitacional.
O acirramento das políticas econômicas de mecanização do campo e concentração de indústrias na região Sudeste levou muitas famílias da classe trabalhadora rural e urbana a migrar das pequenas cidades do interior do Paraná e de São Paulo para centros urbanos como Campinas e região. Assim, em 1990, os de Freitas Pérsio chegaram em Valinhos (São Paulo), onde Marcílio passou a trabalhar como pedreiro.
No novo contexto sociocultural, em uma região de adensamento da classe trabalhadora, Samuel, o quarto e único filho homem, cresceu, fez o ensino básico e aprendeu com o pai o ofício de pedreiro, profissão que exerce desde os 15 anos.
Na adolescência, iniciou-se também no aprendizado de técnicas e expressões artísticas, quando com 16 anos, em 1998, estudou desenho artístico com o professor Sebastião Moreira na Casa de Cultura de Valinhos. Foi então do desenho à palavra ou vice-versa, pois, “motivado pelos causos do meu avô materno, tomei gosto pela criação de personagens e histórias”. Porém o rígido cotidiano da vida de jovem operário da construção civil e as barreiras sociais impuseram obstáculos entre os ofícios de pedreiro e os da criação artística.
Ainda assim, desde esse primeiro contato formal com o fazer artístico, no final da década de 1990, Samuel nunca deixou de desenhar e escrever. Nos fins de semana, pela manhã antes de sair para o trabalho ou, por vezes, em meio ao canteiro de obras, vários cadernos e folhas soltas foram preenchidas com personagens, poemas e histórias.
De forma ininterrupta, desde a adolescência até a vida adulta, o exercício do imaginar e materializar formas e emoções sobre uma superfície plana vem ocupando os intervalos do tempo de Samuel vendido à construção civil.
Criar obras pictóricas em tela a partir de seus desenhos era um desejo latente, porém, até recentemente, não havia ousado obter a autopermissão; pois, como explicita em seu poema “Autodeclaração”: na sociedade que fragmenta e hierarquiza ofícios e saberes, criar e pintar em telas emolduradas é capacidade apartada de quem ganha a vida criando e pintando paredes. Mas, nos últimos três anos, a produção de pinturas e esculturas foi se instalando entre suas lidas diárias, tomando espaço em sua casa transmutada em uma oficina de arte.
Compreender o caminho que o levou a criar obras pictóricas e escultóricas é importante, pois essa autodeclaração de artista, feita por um dos de Freitas Pérsio, foi forjada na lida coletiva das tramas de saberes presentes nas práticas culturais e políticas da classe trabalhadora em grandes centros urbanos, como é a cidade de Campinas.
O poema “Autodeclaração”, escrito em março de 2017 em meio a intensa criação pictórica, traz a síntese do percurso de constituição dessa autopermissão de existir como um ser inteiro ou, ao menos, de buscar sê-lo.
Nessa busca, todo seu insumo artístico, dos temas aos suportes, molduras e tintas, foi elegido a partir de seus conhecimentos e experimentações na construção civil. As tintas têm as mesmas bases das usadas em paredes e pisos, os suportes são extraídos de madeiras, tecidos, lonas e sacos de ráfia que embalam areia, pedras, cal e cimento.
As pinturas e esculturas aqui expostas, criadas entre 2016 e 2018, são autodeclaratórias da permissão de ser artista, grafada em versos, moldada em ferros e pigmentada em panos, lonas e sacos de cimento.
Em sua casa ateliê oficina, além das obras, desenhou, planejou e construiu todos os painéis e demais mobiliários expositivos para esta exposição, para a qual também concebeu e executou a iluminação e a distribuição espacial de cada peça.
Não é somente a soma de saberes e competências para imaginar, planejar e realizar tais fases da atuação criativa que demarca o caminho trilhado até sua autodeclaração de artista. A isso tudo, Samuel de Freitas Pérsio juntou o que trocou com outros que, como ele, em 2013, saíram às ruas em busca de espelho: gente trabalhadora que se jogou num mar de corpos que ansiava por sair do espaço contido entre a casa e o trabalho, para se encontrar e se reconhecer em outros rostos.
Assim foi seu mergulho nas manifestações e movimentos sociais. Assim tem sido a intensificação de troca de saberes e técnicas diversas de criação e expressão artística para encontrar sua própria voz. Como ele mesmo afirma: “desenhar, pintar, criar formas, é a minha fala”.
Essa busca por encontrar sua própria voz tornou-se ainda mais intensa nos últimos anos, quando os caminhos que trilhou em militâncias coletivas em midialivrismo e direitos humanos o fizeram consciente da urgência em desenvolver saberes e habilidades para colocá-los a serviço das frentes de luta contra todo tipo de opressão.
O encontro com outros trabalhadores artistas propiciou a Samuel conhecer e desenvolver seus ofícios. Assim, aprimorou-se em técnicas de iluminação cênica com o músico e produtor Daniel Dias, na Rede Usina Geradora de Cultura/ Escola Municipal de Cultura e Arte, em 2016/2017; desenvolveu-se na confecção e manipulação de bonecões com o mestre bonequeiro Sebastian Marques, na Oficina de Sonhos da Estação Cultura, em 2016/2017; fez-se aprendiz e parceiro na confecção, manipulação e interpretação teatral com bonecos Banraku do criador e diretor Jesus Seda, na Rede Usina Geradora de Cultura/ Escola Municipal de Cultura e Arte, em 2018.
Sua voz própria forjou-se também ao intensificar a participação junto com outros trabalhadores artistas na organização de mostras de audiovisuais, na militância midialivrista, na concepção e montagem de cenários, no planejamento e execução de montagem de equipamentos para captação, registro e transmissão de som e imagem com movimentos sociais que constroem o Mostra Luta, a Sala dos Toninhos, a Oficina Geradora e as ações públicas do Conselho de Direitos Humanos de Campinas e o Coletivo Socializando Saberes.
Não por acaso, as produções pictóricas e escultóricas reunidas nesta mostra dão a ver a explosão de suas “falas” autodeclaratórias entre 2016 e 2018.
A mostra Autodeclaração é uma seleção de obras que apresentam rostos, mãos e silhuetas de corpos que dá a ver que, entremeios a ser pedreiro e ser artista, Samuel trilhou caminhos que desmontam as falas daqueles que segregam formas de vida sob substantivos estanques.
Nessa caminhada, aos poucos foi ganhando forças para afirmar com voz própria que os ofícios de pedreiro e de artista, que a história de sua gente abarca, não são nem um, nem dois, mas Duos.
Duos, como dizem os dicionários, são sujeitos de iguais potências; portanto, ante a vida cindida pelo capital, afirmar-se Duo é subverter as disjuntivas dos recortes sociais demarcadores de papéis e destituidores dos conhecimentos ancestrais que encarnam toda criação humana.
Ainda que saber-se Duo não abarque a totalidade e as profundezas dessas ancestralidades, nem resuma as criações técnicas e artísticas da classe trabalhadora presentes em cada gesto da produção da vida, trata-se de um saber que oferece um caminho outro ao da lógica fragmentária da mercantilização da experiência humana.
Foi nesse caminho que, no corpo que carrega origens negras e rubras dos de Freitas Pérsio, Samuel percebeu a necessidade de declarar-se Duo, na carne e na arte.
Sônia Aparecida Fardin
Doutora em Artes Visuais